TODOS OS CUS FEDEM . DIÁLOGOS SOBRE A TIRANIA

As páginas inúteis, que seguem, são a expressão, tão artística quanto o assunto torna possível, do que as ideias (…) sugerem a um espírito perscrutador. Elas são o resultado de uma especulação estéril sobre o conflito entre a Brutalidade,(…), e a Estupidez, (…). O papel da Inteligência é não aceitar o Instinto. Que a Brutalidade ou a Estupidez vencesse, era indiferente para a Inteligência. Que a Estupidez haja vencido já lhe não pode ser indiferente.          

                                                           In  Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. De Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão. Lisboa: Ática, 1980. )


A proposta teve como ponto de partida fragmentos de texto encontrados no baú de Fernando Pessoa que ele intitulou Cinco Diálogos sobre a Tirania. Caracteristicamente, enquanto objeto artístico em processo de criação, esse ponto de partida poderá evoluir, e portanto ser modificado até tomar uma forma final, que poderá ou não ter contacto evidente com este ponto de partida.

Além dos “Diálogos” de Fernando Pessoa citados acima, se referenciará o diálogo escrito por Xenofonte que morreu 345 anos A.C. onde um poeta conversa sobre as desvantagens e vantagens da vida com um tirano, comparando a vida deste ao de um homem comum. Essas linhas mais reflexões sobre o tema de muitos outros pensadores, de Platão a Timothy Snyder passando por Hannah Arendt, Bertold Brecht ou Alfred Jarry, curiosamente se colarão com naturalidade num diálogo contemporâneo entre o detentor de um dos mais pequenos poderes e um seu subalterno, numa situação absurdamente longe do chamado alto pensamento, mas análoga da relação de um tirano/opressor com seu subalterno/oprimido. Falaremos aqui de um “tirano” que não chega a caracterizar-se por ser apenas injusto, como nas definições de Platão, mas por estar convencido ser uma espécie de deus todo poderoso… e de ser um estúpido vencedor, como talvez o caracterizasse Fernando Pessoa. 

Trata-se de um diálogo entre um chefe de serviço de limpezas de um hospital e sua chefiada, uma mulher-a-dias sem contrato regular de trabalho e em situação de constante penúria mas nem sempre muito humilde, nem sempre subserviente. 

Ela e seu chefe tem problema grave a resolver: praticamente todos os dias, sem que se tenha ainda conseguido descobrir como isso é feito, na imaculada parede branca do exterior das casas de banho naquele andar do centro cirúrgico aparece um grafite que diz em maiúsculas: TODOS OS CÚS FEDEM... e a limpar aquele grafite é como a mulher começa todos os seus dias de trabalho... 



	
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